segunda-feira, 15 de maio de 2017

UMA COMPARAÇÃO ENTRE O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O INGLÊS

JOTA.INFO - Publicado 20 de Julho de 2015


Nagashi Furukawa



Oxford

No mês de junho de 2003 participei de um evento internacional realizado na Universidade de Oxford, na Inglaterra, denominado “Promovendo os Direitos Humanos Através da Boa Governança no Brasil”, organizado pelo Conselho Britânico e pelo Centro de Estudos Brasileiros daquela universidade. Fui convidado oficialmente pelo Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido para proferir palestra cujo título era: “Reforma no Sistema Penal Brasileiro e Alternativas à Prisão”.

Nunca fui muito ligado em fazer viagens de trabalho para o exterior, porque os serviços na secretaria me impediam de sair (além da Inglaterra, estive uma vez nos EUA e outra na Costa Rica). Mesmo viagens para descanso foram muito poucas. Só consegui sair em licença por duas vezes em seis anos e meio. Na primeira, o governador me autorizou a faltar por cinco dias e fui com meu filho Hélio pescar no Amazonas.

Por uma dessas peças que o destino nos reserva, no segundo dia da viagem minha mãe faleceu. Só conseguiram nos localizar mais de 12 horas após o falecimento, em plena selva amazônica, num barco pesqueiro que havia parado no Rio Negro, onde não chegava sinal de telefone e mal se falava no rádio. Um mensageiro teve que subir o rio por mais de cinco horas com a triste notícia. Descemos o rio durante a madrugada fria, em um pequeno e inseguro barco até Barcelos, uma pequena cidade cujas ruas estavam totalmente desertas quando chegamos, por volta das 3 horas. Apesar do esforço do pessoal da minha assessoria e da ajuda do ministro da Justiça, [simple_tooltip content=’Ministro da Justiça de 2003 a 2007, durante o primeiro mandato do presidente Lula’]Márcio Thomaz Bastos[/simple_tooltip], não conseguimos chegar a tempo para o sepultamento. O ministro mandou um hidroavião da polícia federal nos apanhar em Barcelos. Por este gesto de solidariedade serei eternamente grato ao ministro. Foi um dos dias mais tristes da minha vida…

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Pouca gente sabe, mas secretário de Estado em São Paulo não tem sequer direito a férias remuneradas. Se quiser sair por alguns dias para descansar, tem que fazê-lo mediante autorização do governador na forma de licença sem vencimentos. O povo imagina que alguns cargos públicos são rodeados de vantagens e altamente remunerados. Não são. Não há vantagem nenhuma, a não ser um veículo de representação que fica à disposição do secretário.

Nas secretarias da Segurança Pública e da Administração Penitenciária, além do veículo, existe a assessoria militar, que faz a segurança pessoal dos secretários. No meu caso eram dois policiais que me acompanhavam nos deslocamentos durante o serviço. Fora do trabalho nunca tive ninguém fazendo minha segurança e nem dos meus familiares.

O salário do secretário é outro problema: na minha opinião muito baixo levando-se em conta a responsabilidade das funções. Minha remuneração líquida mensal era de 4 mil e oitocentos reais para dirigir uma pasta com quase 30 mil funcionários em 144 unidades penais com mais de 125 mil presos. Os demais secretários têm a mesma remuneração. O da Fazenda, por exemplo, cuida de um orçamento anual de 80 bilhões de reais e ganha esse salário.
Agora, fora do governo, fico à vontade para dizer que um secretário de Estado deveria ser mais bem remunerado.

Sem essa remuneração mais compatível, especialmente os mais jovens que ainda têm filhos em idade escolar, ficam impossibilitados de dar sua contribuição para o serviço público. Deixo esta informação registrada apenas a título de esclarecimento, porque, no meu caso, sendo juiz aposentado, não tive problemas de natureza financeira e nem fui ser secretário para ganhar bem. Sei que o assunto é uma espécie de tabu, em que ninguém quer falar abertamente, por parecer mesquinharia ou busca de vantagens pessoais. No entanto, o assunto é sério, pois é muito difícil encontrar pessoas talentosas e eficientes com uma remuneração desse nível. O que acontece hoje é que muitos são independentes financeiramente. Os que não estão nessa situação vão para o sacrifício pessoal e familiar, em nome do idealismo. Não me parece que esta seja a melhor fórmula de se buscar excelência no serviço público.

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Voltando ao convite, embora não seja fanático por viagens, fiquei muito honrado e até envaidecido em poder falar na famosa Universidade de Oxford. Teria, ainda, oportunidade de conhecer o sistema penitenciário inglês, o que tornava o convite irrecusável.

A viagem, além de muito agradável, foi bastante instrutiva.

Fui sozinho e preocupado porque não sei falar inglês. Porém, as autoridades britânicas são muito organizadas. Não tive dificuldade alguma. No Aeroporto de Londres, quando me preparava para descer, a comissária de bordo anunciou meu nome no microfone e eu, tentando saber o que ela dizia, fui descobrir que a intérprete já se encontrava na porta do avião. Nem precisei descer as escadas para encontrá-la:

— “Muito prazer. Sou Nadia Cerecuk, do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, à sua disposição. Seja bem-vindo, em nome de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra. Espero que tenha uma agradável estada entre nós”.

Era uma brasileira residente há muitos anos em Londres, nascida no Paraná. Uma senhora muito culta e distinta, estudiosa da história, com cerca de 50 anos de idade. Tinha os cabelos grisalhos que contrastavam com a pele morena, meio baixinha e gordinha, com fortes óculos de grau. Falava um português irrepreensível, inclusive com perfeito domínio dos termos técnicos. Não é fácil para quem não é da área dominar expressões como “inimputabilidade”, “responsabilidade penal”, “jurisprudência”, “carta precatória”, “audiência por vídeo conferência”, etc. E Nadia não escorregava em nada. Também, antes de mudar-se para a Inglaterra foi professora e é doutora em língua portuguesa.

Fiquei encantado não só pela recepção, como pela cultura da intérprete, que no caminho do aeroporto ao hotel foi dando os nomes de tudo o que víamos pelo caminho, contando resumidamente a história de cada um dos belíssimos castelos que avistávamos. Até o final da minha estadia no Reino Unido, de cinco dias, aprendi muita coisa que certamente jamais teria acesso se a viagem fosse de turismo.

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Visitei e fiz contato com as principais autoridades penitenciárias de lá: Centro Internacional de Estudos de Prisões; Escritório Central do Serviço Penitenciário; Grupo de Administração Penitenciária; Unidade de Planejamento e Desenvolvimento de Penitenciárias; Penitenciária de Woodhill, na cidade de Milton Keynes; Faculdade de Serviços Penitenciários; Ouvidoria do Sistema Penitenciário; Inspetoria Geral das Penitenciárias; Comitê de Reforma Penitenciária; Penitenciária de Latchemere House e ainda com breve passagem pela Casa dos Lordes, no Parlamento Inglês.

Com base nos dados oficiais que me foram fornecidos pelas autoridades, todos devidamente documentados, registro alguns que certamente levarão os leitores a refletir:

1.- O sistema penal do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales, com cerca de 80 milhões de habitantes), tinha 73 mil presos. No Estado de São Paulo, com aproximadamente 40 milhões de habitantes, em maio de 2006, a população prisional era de 141 mil, sendo 125 mil na SAP. O aumento de presos na [simple_tooltip content=’Secretaria de Administração Penitenciária’]SAP[/simple_tooltip], nos seis anos e meio da minha gestão foi de 72 mil presos (quase o número do Reino Unido inteiro);

2.- O aumento mensal médio nos últimos 12 anos (1991 a 2003) no Reino Unido foi de 231 presos. Em São Paulo, na SAP, de 923 (falo SAP porque não estou incluindo a [simple_tooltip content=’Secretaria de Segurança Pública’]SSP[/simple_tooltip]);

3.- Número de funcionários nas prisões públicas (lá existem 10 estabelecimentos privados): 45 mil para mais ou menos 66 mil presos. Em São Paulo, 30 mil funcionários para 125 mil detentos;

4.- O custo anual do preso: 25 mil libras, cerca de 123 mil reais, ao câmbio de 2003; mais ou menos 10 mil reais por mês. Em São Paulo, o custo médio mensal em 2005 foi de 700 reais;

5.- O custo médio de uma vaga nas penitenciárias do Reino Unido era de 100 mil libras, ou seja, 493 mil reais (achei que eles se enganaram no número de zeros e perguntei se não seria de 10 mil libras, mas não havia engano). As últimas penitenciárias que inaugurei em São Paulo tiveram o custo médio da vaga em torno de 14 mil reais. A penitenciária de segurança máxima de Presidente Bernardes, com 160 vagas, inaugurada em 2002, custou R$ 7.700.000,00 (sete milhões e setecentos mil reais): 48 mil reais a vaga;

6.- O número de suicídios no sistema inglês, com 73 mil presos, em 2002, foi de 90. Em São Paulo, em 2005, com 121 mil presos, suicidaram-se 14 presos. É isto mesmo, sem engano: no Reino Unido cometem suicídio 14 vezes mais do que em São Paulo. Não me forneceram os números dos homicídios e das mortes naturais;

7.- O número de fugas no regime fechado, em 2002, foi de 50 no Reino Unido. Em São Paulo, em 2005, de 138. Neste item os britânicos estão bem melhores do que nós. Em percentuais, seria o seguinte: 0,11% em São Paulo e 0,07% no Reino Unido;

8.- A reincidência lá era de 60% para os jovens e de 40% para os idosos. Aqui é de 58%, sem separação entre jovens e idosos;

9.- O salário médio mensal de um agente penitenciário no Reino Unido: 1.300 libras, ou R$ 6.409,00. Em São Paulo um agente recebe R$ 1.200,00 por mês.

Estes são os dados mais relevantes e que mais chamam a atenção. Existem outras peculiaridades no sistema inglês que ainda vou relatar mais adiante.

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Na tarde do dia anterior ao seminário Nadia e eu fomos de trem para Oxford. Foram cerca de 30 minutos de viagem. Belíssimas paisagens, mais e mais explicações da intérprete sobre fatos históricos, monumentos, castelos. Gostaria de ter guardado tudo o que vi e ouvi, mas não foi possível, tal o volume das informações que ela despejava nos meus ouvidos.

Fiquei em um hotel pequeno perto da universidade, instalado em um casarão medieval. Era uma casa de cor amarela, com várias árvores ao redor. Depois da grande sala na parte inferior, havia uma bela escada de madeira que levava aos quartos. Uma leve brisa fria dava um toque especial ao cenário. No hotel se encontrava Andy Barclay, um estudioso inglês do sistema penitenciário que eu já conhecia. Ele vem promovendo em São Paulo, há mais ou menos 3 anos, um curso de melhoria na gestão de penitenciárias, com as despesas totalmente custeadas pelo governo inglês. Embora Andy venha regularmente ao Brasil há vários anos, não consegue falar uma palavra em português. A intérprete me deixara no hotel e nosso reencontro se daria depois do encerramento das conferências. Meu entendimento com Andy foi muito complicado.

Fomos juntos encontrar um grupo de brasileiros num restaurante à beira de um rio. Lá estava Fiona Macaulay, pesquisadora de Oxford para assuntos brasileiros, pessoa que me indicou para fazer a palestra, minha conhecida há alguns anos. Ela fala muito bem português e foi minha salvação. Marcos Rolim ex-deputado petista do Rio Grande do Sul, também participou do jantar. Ele estava fazendo um curso de especialização em Oxford. Sua única reclamação era o alto custo de vida na Inglaterra. A bolsa que recebia mal dava para as despesas domésticas, foi o que me contou. Realmente as coisas são caras por lá. A diária do hotel era de 150 libras, cerca de 750 reais. O jantar foi agradabilíssimo, com um delicioso peixe na brasa, e, é lógico, cerveja quente inglesa.

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No dia seguinte pela manhã fui à famosa Universidade de Oxford para a palestra. Mais um brasileiro estava inscrito e falou antes de mim: o sociólogo e pesquisador Túlio Kahn, que dirige hoje o Centro de Planejamento e Análises da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Ele fez uma ótima apresentação, recheada de dados estatísticos sobre o Brasil e sobre a questão dos direitos humanos em nosso País.

Quando chegou minha vez de falar, a fita de vídeo que havia levado com imagens da implosão da Casa de detenção de São Paulo não pode ser exibida. Houve um problema com o aparelho. Falei cerca de 40 minutos, expondo minuciosamente as dificuldades em administrar um sistema penal que cresce tanto como em São Paulo. Descrevi as ações do governo paulista nesta área, as dificuldades orçamentárias de um País com tantas outras prioridades e encerrei contando a experiência dos Centros de Ressocialização que são administrados com participação das ONGs. Os participantes estavam impressionados com a grandeza dos números. Não conseguiam entender como era possível administrar um sistema que recebe mais de 900 presos todos os meses.

Falei das penas alternativas, que seriam um caminho natural para diminuição da população prisional. Todavia, expliquei que esse caminho, ao contrário do que muitos pensam, não é solução para todos os problemas. Na verdade, os criminosos que recebem esse tipo de punição não são os que ocupam vagas no sistema penitenciário. No Reino Unido também é assim: só recebem penas alternativas os que cometem delitos insignificantes, punidos com até seis meses de detenção, como dirigir sem habilitação ou embriagados; que se envolvem em pequenas brigas sem maiores conseqüências ou em pequenos furtos. Os autores de crimes graves também lá são punidos com privação da liberdade.

Outros palestrantes de outros países descreveram suas realidades. Não vi quase nada de novo.
Em todos os lugares do mundo o sistema penitenciário é mais ou menos igual: um pouco mais eficientes em alguns e menos em outros. As taxas de reincidência são altíssimas: quase sempre em torno de 60% a 80%.

Encerrado o seminário, passei os demais dias conhecendo o sistema penal da Inglaterra. A primeira visita foi a uma penitenciária de segurança máxima na cidade de Milton Keynes, denominada “Woodhill”. Houve breve revista na entrada, com aparelhos detectores de metal, nada muito rigoroso. Percorremos as dependências da penitenciária e vi poucos presos fora das celas. Perguntei se não existiam oficinas de trabalho e me responderam que naquele dia, por haver uma atividade especial, que não explicaram o que era, as oficinas estavam fechadas. Eram 750 detentos, provisórios e condenados, com um setor especial para 16 presos, uma espécie de RDD inglês. As celas dos presos são para 3 ou 4 pessoas. Nenhuma delas, mesmo as individuais de segurança máxima, tem chuveiro na parte interna. Há um banheiro de uso comum.

Informaram que 750 funcionários trabalhavam na penitenciária e que o custo anual do detento é de 29 mil libras, ou seja, 142 mil reais, mais ou menos 12 mil reais por mês. Os agentes penitenciários estavam todos rigorosamente uniformizados, com uma farda de cor azul, muito elegante. Achei curiosa a forma como servem as refeições: ao invés de passar o “marmitex” pela portinhola que existe nas nossas prisões, cerca de 4 agentes vão levando as refeições em um carrinho, postam-se a certa distância da porta da cela e os presos, um a um, vão saindo para apanhar suas “quentinhas”. É uma forma muito mais trabalhosa e sem utilidade prática. Melhor é o nosso jeito, que usa menos funcionários, oferece mais segurança e rapidez.

Confesso que fiquei um pouco decepcionado. Não vi absolutamente nada de excepcional. A grande preocupação é com a segurança e quase nada existe com relação à reabilitação (pelo menos não me foi mostrado). Há câmeras para todos os lados e em uma sala grande vários funcionários ficam monitorando as imagens. Desse jeito, também no Brasil, com tantos funcionários e tantos equipamentos, certamente não teríamos boa parte das dificuldades que enfrentamos. Aqui, por força de Lei, são obrigatórias as oficinas de trabalho, as salas de aula, os momentos de recreação; o direito ao exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas. A visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, inclusive a chamada “visita íntima” é assegurada legalmente (art. 41 da LEP).

Creio que a nossa legislação está correta. Temos que ter, porém, consciência das dificuldades que decorrem da tentativa de implantar todos os direitos dos presos visando sua reabilitação, sem as condições materiais e humanas adequadas. Se no Reino Unido, que prioriza a segurança e a disciplina, há necessidade de um funcionário para cada preso, imaginem quantos seriam necessários aqui, onde, além da segurança e da disciplina, a prioridade é para as atividades de reabilitação.

Outra penitenciária que visitei foi a “Latchmere House” em Londres e se destinava aos presos do regime semi-aberto, com 196 vagas e 196 presos. Disseram que procuram evitar, a todo custo, a superlotação. No Reino Unido os presos são classificados em quatro níveis, por periculosidade: “A”, “B”, “C” e “D”. No primeiro estão os mais perigosos e no último os do regime semi-aberto. Informaram que só havia mais uma unidade para o regime semi-aberto, também com cerca de 200 vagas.

Embora com máquinas industriais mais sofisticadas que as nossas, também não vi nada de excepcional em suas oficinas de trabalho. Os presos ficam recolhidos em alojamentos muito semelhantes aos nossos e trabalham nessas oficinas.

Perguntei qual era o critério para cumprimento de pena naqueles estabelecimentos, já que eram pouquíssimas vagas (cerca de 400) em um universo prisional de 73 mil presos (em São Paulo temos 12 mil presos em regime semi-aberto). Explicaram que somente os que moram nas proximidades da penitenciária, em fase final de cumprimento da pena e que cometeram delitos de menor gravidade são autorizados a ficar naquele regime. E os demais, que moram longe, também cometeram delitos de menor gravidade e também estão no final da pena? Não há o que fazer, estes cumprem pena no regime fechado, foi o que me responderam.
Afinal, o sistema não é tão justo e nem tão perfeito como imaginamos.

Algumas práticas inglesas, porém, são muito avançadas em relação ao que ocorre no Brasil. Existe uma modalidade de prisão domiciliar, destinada aos que estão em fase final de cumprimento da pena e quando não representam perigo para a sociedade. O monitoramento é feito com uso de pulseiras eletrônicas. Esta teria sido uma das fórmulas para enfrentar o problema da superlotação.

Outra coisa muito interessante diz respeito à atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público nas prisões. Esses dois órgãos não exercem nenhuma atividade na execução da pena, porque todas as decisões são administrativas, inclusive as progressões de regime e as autorizações para cumprimento em regime domiciliar. A Ouvidoria do Sistema Penal, órgão do poder executivo, é que tem a incumbência de acolher e apurar as reclamações individuais dos presos e de recomendar providências às autoridades competentes. Somente quando o preso não se conforma com as medidas tomadas, recorre ao Poder Judiciário.

Esta forma de administração possibilita muito mais eficiência do que o sistema jurisdicionalizado, como o nosso. Em outro capítulo estarei falando sobre a “administracionalização da execução penal”, onde coloco as razões pelas quais entendo que o sistema inglês é melhor que o nosso.

Fiquei bastante chocado com a informação de que a responsabilidade penal no Reino Unido inicia aos 10 anos de idade. As prisões que acolhem crianças e adolescentes são separadas dos adultos, mas estão sob a responsabilidade da mesma autoridade, que é o Ministro do Interior. Não há, como aqui, secretaria da Justiça cuidando dos adolescentes e a da Administração Penitenciária, dos maiores de idade. Pelas informações que me deram não são poucas as crianças com 10 ou 12 anos cumprindo pena. Não consegui obter o número, nem mesmo aproximado.

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– Recentemente, a “Folha Online” de 03 de abril de 2006 publicou interessante matéria com o título “ONG britânica denuncia superlotação nos presídios da Inglaterra”. Consta que a organização não-governamental “Prison Reform Trust” divulgou um relatório denunciando uma iminente crise no sistema penitenciário britânico em razão da superlotação.

“O informe – prossegue a notícia – traça um quadro formado por sentenças irregularmente prolongadas, detenção de jovens e infratores de baixa periculosidade, utilização excessiva da prisão preventiva, além da alta incidência de dependência de álcool e de doenças mentais entre os detentos. O número de prisioneiros da Inglaterra subiu significativamente desde a queda comum registrada na época do Natal. O sistema prisional inglês ultrapassou novamente a marca dos 77 mil detentos, se aproximando de uma cifra recorde. O Ministério do Interior do Reino Unido enfatizou, no ano passado, a necessidade de reduzir a reincidência dos prisioneiros por meio da criação de empregos, do tratamento dos dependentes químicos e da manutenção de ligações dos detentos com suas famílias. Em março de 2006, a população prisional da Inglaterra e do País de Gales era de 77.004 pessoas, uma alta de 2.603 em relação ao ano anterior. Nos últimos dez anos, o número de prisioneiros nestes locais sofreu uma elevação de mais de 25 mil pessoas”.

“Estes fatos e números sobre o estado de nossas prisões deve ter a função de chamar a atenção do governo, preocupado com outras coisas. As prisões devem ser lugares para se manter com segurança e para se promover todos os esforços a fim de reabilitar os criminosos mais perigosos e violentos. A rápida alta destes números reduziu muitas prisões a depósitos trancafiados, em que as autoridades penitenciárias acabam atuando como simples carcereiros, transferindo pessoas de prisões superlotadas para prisões superlotadas. Ninguém pode ficar satisfeito com um sistema prisional que leva pessoas a cometer cada vez mais, e não menos, crimes. As prisões superlotadas estão transformando pequenos infratores nos velhos presidiários do futuro”, afirmou Juliet Lyon, diretora da “Prison Reform Trust”.

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O aumento médio de 200 presos por mês nos últimos 10 anos fez acender as luzes de alerta dessa entidade inglesa, que adverte as autoridades sobre a “iminência de uma crise no sistema penitenciário britânico”. Aqui entre nós, suportando um aumento mensal de mais de 900 presos nos últimos seis anos, com todas as dificuldades financeiras e orçamentárias, quando ocorreu a grande crise de maio/2006, quase toda a sociedade paulista e brasileira se espantou. Vejo agora, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, a demagogia barata que se faz em torno de um assunto tão sério como esse, somente para obter alguma vantagem eleitoral. Sério e difícil, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Espantado fico eu com a irresponsabilidade e o descaso com que o assunto é tratado.

A notícia da Folha Online, do início deste ano, só me fez reforçar a impressão que trouxe da Inglaterra na visita de 2003: embora com gastos inimagináveis para nossos padrões, os ingleses também não conseguem obter grandes resultados com as suas prisões. Afinal, a reincidência para os jovens gira em torno de 60% e para os mais idosos, em 40%. Esses números são muito parecidos com os nossos e não devem ser muito diferentes do que ocorre na África ou na Ásia. O percentual de fugas na Inglaterra é um pouco menor que o nosso, mas os suicídios atingem 14 vezes mais.

A razão é elementar: privar o ser humano do mais precioso valor, só abaixo da vida, atenta contra seus instintos naturais e só pode torná-los piores. Há evidente contradição entre o objetivo de reabilitar para a vida social e a privação do convívio social. Não se consegue ensinar alguém a nadar a não ser dentro da água. Não se consegue ensinar alguém a obedecer as regras sociais retirando-o da vida em sociedade.

Já que não se inventou ainda uma maneira de preservar a segurança da sociedade e de punir os que violam as regras dessa convivência pacífica, a única maneira de tornar, ou tentar tornar a vida carcerária menos inútil e menos nociva, é levando a sociedade para dentro das prisões, como se vem tentando com algum êxito em São Paulo, nos Centros de Ressocialização (contada em outro capítulo).

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No dia da minha volta Nadia fez a gentileza de me comprar um singelo presente. Em retribuição, deixei com ela a fita com as imagens da implosão da Casa de Detenção de São Paulo e, dentro do envelope, coloquei uma cédula de 20 libras. Escrevi um bilhete dizendo mais ou menos o seguinte:

“Agradeço, sensibilizado, a atenção que me dispensou nestes últimos dias. Jamais esquecerei desta viagem e das coisas que você me ajudou a conhecer. A cédula que acompanha representa um velho costume japonês: é o sinal de que, um dia, voltaremos a nos encontrar. Muito obrigado”.

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(24.10.06)

terça-feira, 9 de maio de 2017

TRIBUTO À BARBÁRIE

CONSULTOR JURÍDICO 11 de junho de 2011


"Estado esconde o preso e vira refém do crime"


Por Jomar Martins




A partir do dia 1º de agosto de 2011, o Presídio Central de Porto Alegre não poderá abrigar mais do que 4.650 detentos. A direção simplesmente deve recusar o ingresso de novos presos, independentemente da natureza da prisão. A determinação partiu, no início de junho, do juiz Sidinei José Brzuska, da Fiscalização dos Presídios da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre e da Região Metropolitana.

Há 12 anos, este que é um dos maiores e mais problemáticos presídios do estado do Rio Grande do Sul, tinha 2.000 detentos em suas galerias, quando a lotação máxima permitia 1.700 apenados. Em novembro de 2010, o número chegou a 5.300 e, no início de junho, baixou para 4.809.

A tendência, avalia o juiz, é fazer com que este teto seja gradualmente reduzido até o cumprimento integral de decisão do Tribunal de Justiça de 1995, determinando que o Central funcione apenas para presos provisórios. Naquele ano, cumpriam pena nesta condição 1.859 presos — e já extrapolavam a capacidade.

A situação chegou a este ponto, segundo Brzuska, porque o estado passou a deixar no presídio os que já estavam lá quando da condenação definitiva. Ou seja, “os presos ingressam na condição de provisórios, seja por flagrante ou prisão preventiva e, uma vez condenados, não são transferidos para outras penitenciárias, mas permanecem cumprindo pena no estabelecimento prisional, em flagrante desobediência à decisão da 1ª Câmara do Tribunal de Justiça de 1995”.

Para o juiz da VEC, esta falha na execução penal é grave e denota o descaso do estado, mas não é um fato isolado. Na raiz de todos os problemas, está a falta de vagas no sistema prisional — cerca de 12 mil em todo o estado. Na sua mesa de trabalho e nos armários, repousam pilhas de ofícios e outros documentos remetidos ao governo do estado, cobrando providências para sanar as dificuldades causadas pela superlotação das casas prisionais. O pedido mais reiterado é pela construção de novas unidades.

“A Região Metropolitana tem 13 mil dos 31 mil presos do estado. Há oito anos, não se constrói uma nova prisão em regime fechado para homens”, afirma, em tom de lamento. Atualmente, conforme o Departamento de Planejamento da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Rio Grande do Sul (Susepe), o estado conta com 30.348 condenados cumprindo pena. Os homens são maioria: 28.276.



Além da superpopulação carcerária, da falta crônica de servidores e de deficiências de estrutura, há um novo fenômeno nas cadeias: a gestão compartilhada com os presos. O juiz a sua descoberta, nas suas andanças pelo sistema prisional do estado, de cantinas dentro dos presídios, onde é possível encontrar escovas de dente, papel higiênico, barbeador. Itens básicos que não são oferecidos pelo Estado ao cidadão preso.

‘‘É uma desumanidade o que acontece dentro das nossas prisões. Chegamos ao limite da tolerância. Se as autoridades continuarem escondendo o preso da opinião pública e se esta continuar achando que presidiário não é gente, o sistema marcha para a barbárie’’, adverte.



Quem olha o acervo de fotos no computador do juiz — de onde estas foram tiradas — não tem dúvida de que o Rio Grande do Sul já não foge à regra do que se vê pelo Brasil: presídios superlotados, sujeira por toda a parte, doentes sem atendimento, corrupção, maus tratos e a tolerância com o crime organizado. Parece que o estado se demitiu de suas funções, responsabilidades e prerrogativas.

Nesta entrevista, o juiz Sidinei Brzuska fala dos principais problemas das cadeias gaúchas, dá pistas de como solucioná-los e tece críticas ácidas tanto à omissão do Poder Executivo, a quem cabe a guarda e ao atendimento dos que cumprem pena, quanto ao descaso da sociedade para com a sorte dos presos. ‘‘Para muitas pessoas, preso morto é ‘um a menos para incomodar’. Esta manifestação é reveladora do estado de consciência da nossa sociedade.’’

Leia a entrevista:

ConJur — Como e quando começou este trabalho de fiscalização dos presídios?
Sidinei José Brzuska — Na Região Metropolitana de Porto Alegre, existem 27 casas prisionais. Para poder atendê-las de forma satisfatória, a Justiça gaúcha achou por bem criar um Juizado da Fiscalização. Os juízes que atuam nos processos criminais não têm como, ao mesmo tempo, fiscalizar a execução penal e os presídios. Então, optou-se por uma cisão na jurisdição. Os colegas das VECs (Varas de Execução Penal) despacham os benefícios individuais, progressão ou remissão de pena, livramento condicional, entre outros; e o Juizado, sob a minha jurisdição, cuida da fiscalização das casas prisionais e das decisões mais coletivas. Por exemplo: a interdição de uma casa prisional, transferência massiva de presos de um presídio para outro, troca de jurisdição etc. Este trabalho existe desde 2008, mas eu atuo na execução criminal desde 1997, ano em que me tornei juiz.

ConJur — O senhor acompanhou o Mutirão Carcerário no estado, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça? Como avalia este trabalho?

Sidinei Brzuska — Bem, até o momento [início de junho], nós não recebemos o relatório final do Mutirão Carcerário. Só tomamos conhecimento do resultado parcial deste levantamento, que analisou cerca de 23 mil processos. Sob o ponto de vista estrutural, foi importante ter esta radiografia. E, principalmente, porque ela foi produzida por alguém que veio de fora. O juiz enviado pelo CNJ é da Justiça do Maranhão. Isto leva a uma visão mais isenta e permite apresentar, livremente, sugestões para que se possa melhorar o sistema. Penso que o resultado final é mais sincero, porque quem levanta as informações não está todo dia ali, enfim, não é parte do sistema. Eu, por exemplo, coordenei o Mutirão Carcerário no Espírito Santo. Por este aspecto, valeu o trabalho.

ConJur — O Mutirão soltou presos? Apurou irregularidades?
Sidinei Brzuska — As pessoas acham que o Mutirão é feito para soltar preso ou coisa que o valha, mas as coisas se dão de outro modo, bem diferente. Eu monitorei a população carcerária do estado durante o Mutirão. E o impacto do Mutirão sobre a totalidade de presos foi de 0,39%. Ou seja, menos de 0,5% ao longo de 30 dias [o Mutirão começou dia 14 de março e se estendeu até 13 abril]. Nem dá para notar. Não houve reflexo na diminuição do número de presos, não houve esvaziamento de prisões, soltura em massa ou reforço na segurança pública, nada disso. O número de irregularidades apuradas foi mínimo, pois nós já tínhamos ciência destas. Por isto, segundo fiquei sabendo informalmente, o colega que coordenou o Mutirão, juiz Douglas Melo Martins, quer propor o modelo do nosso Juizado para outros estados.

ConJur — Quais os maiores problemas do sistema prisional gaúcho?

Sidinei Brzuska — Nós temos um problema principal, que é a superlotação das casas prisionais, e deste decorrem todos os outros. Ocorre que este problema vem acompanhado da ausência de servidores em quantidade suficiente, da falta de infraestrutura etc. A soma destas carências vai gerando um vácuo na gerência do sistema, propiciando o aparecimento de administrações paralelas. Com a ausência progressiva do Estado, a administração dos presídios tem de ser feita de forma compartilhada com os presos. E vai cedendo cada vez mais espaço aos presos. Resultado previsível: o Estado começa a se tornar refém do crime e tem dificuldade de retomar o terreno cedido.

ConJur — O senhor. tem um exemplo marcante desta política?

Sidinei Brzuska — Recentemente, estive no Presídio Central e fotografei uma cantina das galerias. Não é a cantina do estado, é uma cantina dos presos, mercadinho dos presos. Existem muitas. Na parede, expostas, várias escovas de dente, assim como aparelhos de barbear, novinhos, prontos para serem vendidos. Além dos itens de higiene pessoal, o mercadinho expõe azeite, massa, pudim, entre outros gêneros de primeira necessidade. Bem, conversando com um servidor da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que tem 32 anos de serviço público, perguntei: “Nestes 32 anos, quantas vezes tu entregastes uma escova de dente a um preso?” Sabes o que ele me respondeu? “Nunca, nenhuma vez.” Então, o Estado não faz a sua parte. O estado não fornece para o preso um prato, uma colher, uma muda de roupa, um sabão, muito menos papel higiênico. O problema é que o preso necessita destes bens. O que ele faz? Acaba se associando a outros presos para conseguir o que o Estado lhe nega. Ao buscar esta sociedade, ele se torna um devedor. E devedor tem que pagar, com o que tiver à mão: com o corpo, levando droga pra dentro da cadeia, executando tarefas. Cometendo crimes nas ruas. Às vezes, paga com a própria vida.

ConJur — Mas o Presídio Central não foi reformado?

Sidinei Brzuska — Fizeram uns pavilhões novos, de péssima qualidade, um puxadinho e alguns remendos. Há 12 anos, a população do Presídio Central era constituída de 2.000 presos, quando deveria ter, no máximo, 1.700. Hoje, tem 4.800. É algo desumano. Por isto, a partir de agosto, já determinei que este contingente não poderá passar de 4.650 pessoas.

ConJur — O condenado vai para o sistema prisional para ser castigado ou ressocializado?

Sidinei Brzuska — A prisão não escapa da questão punitiva. No entanto, a pena não deveria se esgotar na punição, a fim de melhorar o preso. Como não chegamos até este patamar, não podemos falar em ressocialização ou profissionalização do preso. Quando acontece, é uma exceção. São iniciativas pontuais, individuais, de um diretor, de um juiz ou promotor, e não do Estado. Porque o Estado não tem uma política clara, objetiva, massiva, que beneficie milhares de presos. Simplesmente, esta política não existe. Existem exemplos de boas práticas, mas que não se transformaram em política pública, que atinja a todos.

ConJur — A falta de uma política que recupere o preso explica a reincidência criminal?

Sidinei Brzuska — Sim, e nós temos índices altos de reincidência. Ocorre que muitos casos de reincidência são fabricados pelo próprio estado. Não temos como mensurar isto, porque inexistem pesquisas na área, como existem em outros estados. Pesquisa feita numa prisão feminina do estado de São Paulo aponta que 98% das detentas faziam parte do tráfico de drogas. Deste universo, 100% delas estavam numa posição subalterna na hierarquia do tráfico; ou seja, eram usadas pelo tráfico. Transportavam ou guardavam drogas. A pesquisa também apontou que 70% delas tiveram uma relação com alguém vinculado ao crime de tráfico de entorpecentes. Enfim, o estudo mapeou várias situações que explicam por que aquele grupo de mulheres foi parar no crime. No Rio Grande do Sul, nós não temos um estudo semelhante que identifique por completo as causas do crime; logo, não temos uma política para fazer frente e diminuir estas causas.

ConJur — Se o RS não tem uma política de prevenção, nem de ressocialização do preso, o foco da segurança pública fica restrito ao enfrentamento, certo?
Sidinei Brzuska — É isto. Na verdade, não temos nada. Nós vamos jogando as pessoas na prisão e pensando que estamos fazendo o bem. Simplesmente, jogamos estas pessoas na prisão, de forma que se virem lá dentro. O resultado disso é um desastre.

ConJur — Por que, afinal, o sistema prisional e a segurança pública não se transformaram em prioridade para os políticos?
Sidinei Brzuska — Bem, são vários os motivos. É importante notar que o que acontece dentro das prisões é de conhecimento de uma parte muito pequena da população. A sociedade, como um todo, acaba não tomando conhecimento completo, minucioso, dos fatos que se sucedem dentro das prisões. Além disso, também existe a ideia, muito incrustada no inconsciente coletivo, de que o preso tem que sofrer, tem que passar trabalho etc. Então, é um somatório de fatores que faz com que a sociedade se afaste do problema e não queira tomar ciência do que ocorre no sistema. Por outro lado, a classe política é movida por uma pressão social. E a pressão social diz que o preso tem que pagar, tem de sofrer, tem que penar etc. Não há pressão social para resolver o problema prisional. Observe que até naquelas questões em que temos pressão social o estado demora a resolver. É o caso da duplicação da BR-116, da ponte sobre o Rio Guaíba, o problema do engarrafamento do trânsito na Estação Rodoviária de Porto Alegre, entre outros. Veja: o estado levou muitos anos para enfrentar a solução destes problemas. Se não houvesse pressão, nunca iria resolver. As pessoas não irão pressionar a classe política, porque, no fundo, não se interessam pela sorte de quem está lá cumprindo pena. Para muitas pessoas, como pude observar pessoalmente numa exposição de fotos sobre direitos humanos, preso morto é ‘‘um a menos para incomodar’’. Esta manifestação é reveladora do estado de consciência da nossa sociedade.

ConJur — A maioria das casas prisionais existentes no estado vive esta realidade?

Sidinei Brzuska — Na maioria, há falta de higiene, de boas acomodações e de atendimento à saúde ou à promoção do trabalho de recuperação do preso. Isso é a regra, embora existam as exceções. Interessante é que a palavra preso leva à ideia de homem. Hoje, a situação é mais grave no universo das detentas. Nós temos um presidio feminino em Porto Alegre, chamado Madre Pelletier, que não foi projetado para abrigar mulheres. Sequer há banheiros em algumas galerias. Nestas, as necessidades fisiológicas são feitas em potes de plástico. São 550 presas vivendo em más condições. Em Torres, no litoral norte, tem um presídio feminino que também não foi projetado para mulheres, apenas adaptado para receber condenados do sexo feminino. Os banheiros são do tipo ‘‘turco’’ [vaso sanitário no chão, como um buraco]. O único presídio feito sob medida para mulheres é o de Guaíba, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Ele está parcialmente ocupado, por falta de servidores. Se para os apenados homens devemos muito, para as apenadas mulheres devemos tudo, 100%. Ou seja, nós discriminamos as mulheres também no sistema prisional.

ConJur — E a questão das mortes dentro dos presídios? Há registro destes fatos, para embasar uma possível reparação?

Sidinei Brzuskas — Bem, nós, do Juizado de Fiscalização dos Presídios da Região Metropolitana de Porto Alegre, que concentra a maior massa carcerária, procuramos registrar todos os óbitos no sistema. O que verificamos é que a maioria dos presos morre em decorrência de descaso. Um percentual muito pequeno, creio que por volta de 5%, morre vítima de homicídio dentro das casas prisionais. Nestas duas situações, há flagrante falha do estado, de guarda e de atendimento. Junto com o Ministério Público, nós fotografamos o preso morto e verificamos o que se passou com ele, que tipo de atendimento recebeu. Enfim, levantamos as informações possíveis para determinar a causa daquele fato. Depois, chamamos os familiares do preso e entregamos uma cópia deste material, com as fotografias, para fazerem o que entenderem adequado. Alguns, irão demandar na Justiça contra o estado, pedindo reparação financeira. Veja a gravidade: um preso, sob a tutela do estado, morre dentro de um órgão que deveria garantir a sua segurança enquanto decorresse o tempo da pena. Esta documentação é muito útil para esclarecer a autoria de crimes dolosos na Justiça. Às vezes, um processo vem da Polícia Civil sem nenhuma prova para ser julgado no Tribunal do Júri.

ConJur — Os que cometem crimes de menor potencial ofensivo precisariam ficar nestas cadeias, em contato com presos perigosos?

Sidinei Brzuska — Claro que não precisam. As nossas cadeias, hoje, não estão abarrotadas por pessoas que cometeram crimes menores. Se tem alguém nesta condição, é exceção. A realidade mostra que os que estão nestas cadeias grandes são presos condenados por crimes hediondos — tráfico de drogas, homicídio e estupro. O único delito que leva à prisão, e que não é considerado hediondo, é o roubo, o assalto feito com arma de fogo, concurso de agentes ou com violência.

ConJur — O uso de tornozeleiras seria o mais indicado para punir os infratores de crime leve?

Sidinei Brzuska — Depende do que se espera da tornozeleira. A Lei 12.258/2010, que prevê o uso de tornozeleiras ou braceletes eletrônicos para o controle de condenados durante as saídas temporárias do regime semiaberto ou naqueles em prisão domiciliar, não entrou em vigor. Foi vetada pelo presidente da República em 2010. No projeto aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado, havia a possibilidade de substituir a prisão pela tornozeleira, mas foi vetado. Sobrou o quê desta lei? Usar a tornozeleira somente para o controle do preso. Isto é, controlar o itinerário do apenado numa saída temporária, do regime semiaberto. É só o que se pode fazer com a tornozeleira.

ConJur — A Justiça gaúcha chegou a determinar o uso de tornozeleiras?

Sidinei Brzuska — Nós, aqui em Porto Alegre, usamos a tornozeleira para abrir vaga no regime aberto. Depois, como o estado não renovou o contrato com a empresa fabricante, acabamos soltando os presos, sem tornozeleira. E com o veto da lei, substituímos a tornozeleira pelo encarceramento, no regime semiaberto.

ConJur — O preso precisa trabalhar, para se recuperar, e o empresário não lhe dá vaga em função de seus antecedentes. Como sair deste impasse?
Sidinei Brzuska — Nós precisamos reconstruir o sistema, e isto passa por diversas providências. O condenado teria que começar a trabalhar a partir do momento que ingressa na prisão, para cumprir a sua pena. Mas, para que isso ocorra, nós temos fazer com que a sociedade civil olhe para dentro das prisões e participe, de fato, deste esforço. Num primeiro momento, isto pode custar caro ao estado, mas precisa ser feito. Nós não podemos exigir dos empresários a caridade, porque ela não faz parte deste jogo. Não que as pessoas não devam ser caridosas, mas tem que ser uma atitude voluntária, livre, da consciência de cada um. Falo da parceria da iniciativa privada com o estado, que detém a obrigação constitucional de manter o sistema prisional. Vamos pegar o exemplo da cozinha dos presídios, hoje, todas ‘‘atiradas’’ nas mãos presos. Primeiro, é preciso contratar uma empresa para administrar esta cozinha e fornecer a alimentação, de forma padrão. Esta empresa, então, vai contratar presos. Estes presos vão ter de trabalhar de jaleco, barba e unhas aparadas, dentes escovados e carteira de trabalho assinada. Assim é que se recupera o preso: trabalho, dignidade, recompensa pelo esforço. Hoje, o estado não dá uma muda de roupa para o preso — e deveria dar. Esta prisão poderia ter uma fábrica de roupas, o que também demandaria mão de obra. Então, a partir de duas ou três atividades, teríamos uma sequência de empregos. O ideal é que a manutenção das cadeias, embora venha a custar um pouco mais, seja feita pela mão de obra interna e devidamente remunerada. Fora os serviços de guarda, segurança e fiscalização, os demais têm de ser terceirizados, porque a iniciativa privada é mais eficiente para realizar o serviço e treinar estas pessoas. E o estado tem exigir qualificação desta mão de obra. Aí, sim, o preso começa a se ressocializar, a assumir uma nova postura, dentro do cumprimento da sua pena, na própria prisão. Ao fim da sua pena, ele será uma pessoa melhor, pois o envolvimento contínuo com o trabalho o afasta do crime. Isto é totalmente viável, mas o estado não quer fazer, justamente porque se nega a arcar com o custo inicial. Se fizesse isso, teríamos uma prisão ordeira, higiênica e com todos os serviços básicos atendidos.

ConJur — Que modelo serviria para Rio Grande do Sul?

Sidinei Brzuska — No Brasil, o estado que mais se modernizou na questão da segurança pública foi o Espírito Santo. Nos últimos quatro anos, gastou quase R$ 500 milhões para recuperar e modernizar o seu sistema prisional. Eles privatizaram uma parcela pequena do sistema, e a partir daí começaram a mudar a realidade. Não precisa privatizar todo o sistema, mas uma pontinha dele — 10% ou 20%, não mais que isso. Esta pontinha, bem-gerenciada, passa a se constituir em exemplo, em referência, para todo o sistema. Nós precisamos privatizar urgentemente os serviços da atividade-meio, que não sejam os de guarda, de segurança penitenciária. Sabes como as coisas funcionam hoje nos presídios gaúchos? A manutenção de tudo na prisão é feita pelo preso, de forma precária, sem fiscalização e praticamente sem nenhuma compensação financeira para quem realiza a tarefa. E depois a sociedade se queixa de que os presos mandam na prisão ou saem de lá pior. Poderia ser diferente?

ConJur — O crime organizado manda mesmo nas cadeias gaúchas?
Sidinei Brzuska — Primeiro, é necessário fazer a distinção do que ocorre na capital e da situação no interior do estado. São duas realidades muito diferentes. No interior, não há uma criminalidade que gera muito dinheiro. É aquele crime mais comum, de furto e tráfico pequeno. E estes crimes que envolvem menos dinheiro têm, logicamente, menos poder: de comprar, de corromper pessoas, de arregimentar gente. O pequeno bandido não tem poder, por exemplo, para dominar uma galeria, ordenar toque de recolher em vila, abastecer a cadeia com drogas e telefones celulares. Ele não consegue isto. Muitos são ladrões de ocasião, que não têm ‘‘onde cair morto’’. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, por ser um grande centro populacional e econômico, a coisa muda de figura. Aqui, o tráfico explora nichos de mercado, com os previsíveis desdobramentos, principalmente assassinatos por dívidas e desentendimentos. Nós não temos ainda, abertamente, uma guerra do tráfico. Tipo o bando ‘‘A’’ tentando tomar território do bando ‘‘B’’. O território está mais ou menos dividido, e todo o mundo lucra. E isto se reproduziu dentro das prisões. Os territórios externos guardam correspondência com os territórios internos nas prisões. Quem comanda um determinado território dentro da prisão também manda lá fora. E todas as pessoas que foram presas num determinando território seguem para cumprir pena na galeria correspondente. Se entrar noutra, morre. É a lei. Estas facções não têm uma ideologia determinada, como havia antigamente e que só sobraram resquícios. Nesta nova situação, não há ideologia, só dinheiro e negócios. E o negócio da droga movimenta muito dinheiro, pois há produto e um grande mercado a ser abastecido. A busca pelo lucro acaba movimentando uma série de crimes em sequência, com o roubo de carros, e envolve diretamente o criminoso solto e aquele que está preso. As grandes galerias dos presídios se tornam bastante interessantes para o tráfico, porque rendem muito dinheiro. O pessoal preso menciona que uma galeria rende faturamento entre R$ 30 mil a R$ 50 mil por semana. É por isto que, apesar da superlotação, não se vê motim nestes presídios, nem tentativa de fuga em massa. Ninguém quer isso, porque está rolando dinheiro. É o shopping do tráfico.

ConJur — Cadeias menores não seriam uma boa solução, até pela facilidade de gestão e fiscalização? Alguém estudou esta possibilidade no estado?
Sidinei Brzuska — Sim, seria o ideal. Presídio pequeno não fica sob o domínio de facção criminosa. Todo mundo sabe quem é quem. Os agentes do crime não teriam condições de ‘‘fazer uma prefeitura’’, como eles se referem à tomada de um local para exercer administração paralela com o estado. Mas por que ainda não fizemos isto? Historicamente, até por pressão da sociedade, o agente público esconde o preso. Então, as cadeias são construções muradas, distantes do mundo. E ninguém sabe o que acontece por trás destes muros, nem em que condições as pessoas que estão sob a tutela do estado cumprem pena. Na verdade, as pessoas sabem o que acontece, mas varrem o problema para debaixo do tapete de suas consciências. Varrem, mas o problema não deixa de existir porque é ignorado. E fazemos isto como o regime semiaberto também. Uma de nossas melhores casas prisionais do semiaberto, o Patronato Lima Drumonnd, não tem grade, nem muro, porque ela é o inverso de como os presídios foram concebidos hoje. Todas as casas do semiaberto deveriam ser assim, abertas. Pra quê? Para que os que passam na rua possam olhar o que acontece lá dentro. O melhor controle social é o olhar do povo. A população não vai aceitar passivamente o fato do detento ficar lá, sentado o dia todo, sem fazer nada. Esta fiscalização é necessária. Cadeias escondidas não permitem isso, e a barbárie prospera. Então, eu penso que as casas do semiaberto devem ser pequenas e inseridas no meio urbano, dentro da comunidade. Por exemplo, construir uma pequena prisão ao lado de uma agência dos correios, de um posto de saúde, Juizado ou de outro serviço público que gere grande afluência de pessoas. Toda a pessoa que passa perto obrigatoriamente vê a casa e o que acontece por ali. A possibilidade de ocorrerem irregularidades diminui muito, porque o cidadão estará fiscalizando o estado.

ConJur — E como funciona o semiaberto hoje?

SIdinei Brzuska — Bem, no semiaberto, pela lei, o preso deveria ficar numa colônia agrícola ou industrial. Ou seja, uma fazenda ou indústria exploraria a mão de obra do preso. Decorridos um sexto do tempo de cumprimento da pena, ele passaria a ter direito a saídas. Mais tarde, então, ele iria para o regime aberto. No aberto, pela lei, a casa seria desprovida de grades e muros — não pode haver obstáculo contra fugas, nem mesmo guardas. Bom, a realidade é que o estado não tem esta estrutura, em nenhum dos regimes, e acabamos misturando tudo. Hoje, temos presos do semiaberto junto com aqueles de regime fechado.

ConJur — A corrupção é muito grande?

Sidinei Brzuska — Casualmente, tenho comigo, aqui, cópias de denúncias contra policiais e agentes penitenciários, pela prática de crime dentro dos presídios, na minha jurisdição. Nestes documentos, devem constar uns 70 acusados, e este número é só uma pequena mostra da realidade. O que acontece hoje? Como o tráfico de drogas começou a se tornar muito rentável, alguns servidores, até mesmo em função do controle social zero, foram contaminados pela situação. Muitos servidores vivem e trabalham longe dos seus familiares — porque a cadeia sempre é longe! — e estão permanentemente em dificuldades financeiras. Vendo o dinheiro circulando nos presídios, eles acabam cedendo à tentação, embarcando na corrupção. São os chamados corruptos de ocasião, que aproveitam uma eventualidade para se beneficiar, deixar passar uma droga, fazer vistas grossas etc. Alguns ficam com uma parte pequena do lucro, e outros acabam se tornando profissionais. Tem caso em que alguns já são réus mais frequentes. Não podemos excluir do problema alguns policiais militares, que atuam em dois presídios Central e Estadual do Jacuí.

ConJur — Em função de todos estes problemas, causados por desacertos administrativos e falta de políticas adequadas, não estaria na hora de se pensar na responsabilização dos agentes públicos, pessoa física, por direito de regresso?
Sidinei Brzuska — Hoje, não temos ambiente institucional para isso. Cabe à sociedade fazer esta cobrança e exigir que se criem mecanismos para fiscalização e apuração de responsabilidade. Se a sociedade não reagir, as coisas ficarão como estão. E o caminho adequado é que esta indignação chegue ao Poder Legislativo, que tem a prerrogativa de fazer as leis. Veja que as coisas se dão de forma diferente em cada Poder da República. O Poder Judiciário, por exemplo, troca de comando a cada dois anos. E qual é o reflexo nos usuários dos serviços da Justiça, na ponta do balcão? Muito pequeno. Quase ninguém nota a mudança, porque, em geral, as administrações que se sucedem seguem um planejamento estratégico. Isto não ocorre no Poder Executivo, onde, às vezes, muda tudo. Uma questão técnica, como a situação dos presídios, acaba se transformando num embate político. Não que não se deva discutir a aplicação de uma política pública, deve-se, mas a gestão da casa prisional deve ser conduzida de forma técnica. Cada vez que muda o governo, são trocados todos os diretores, o que ocasiona uma quebra de sequência dos procedimentos. Sem falar que existe uma falha de comunicação enorme entre a equipe do governante que sai e a do que assume. Os governantes, no primeiro ano de seu governo, não falam em sistema penitenciário e nem apresentam projetos para solucionar as falhas do sistema. Por que isso? É que dá tempo do eleitor cobrar, e os políticos teriam que explicar por que não fizeram o que prometeram. No segundo ano, sim, começam-se a falar em projetos. Aquele assunto fica rendendo até o terceiro ano de governo, quando, então, fica para o próximo governo. Aí, vem a campanha, e recomeça tudo de novo. E assim nós caminhamos.

ConJur — Qual foi governo que construiu mais presídios?
Sidinei Brzuska — O governo Britto [Antônio Britto Filho, que governou de 1995 a 1999] foi o que mais construiu presídios nas últimas décadas. Começou a erguer cinco casas prisionais moduladas: Charqueadas, Ijuí, Montenegro, Osório e de Uruguaiana. O governo Olívio Dutra não começou nenhuma obra na Região Metropolitana. Depois, veio o governo Germano Rigotto, que, igual ao seu antecessor, não ergueu um só presídio na Região Metropolitana de Porto Alegre, mas iniciou a construção de uma prisão em Santa Maria e outra em Caxias do Sul. O próximo governo foi o de Yeda Crusius, que começou a construir o presídio Arroio dos Ratos e construiu o presídio feminino de Guaíba e mais alguns albergues emergenciais. O de Guaíba não foi ocupado totalmente até agora, por falta de servidores. Presídio masculino, nenhum. Nestes 16 anos de governo, sob os mais diferentes matizes políticos, pouco se construiu e, na realidade, nenhuma vaga foi aberta no sistema fechado para homens, salvo o puxadinho do Presídio Central, porque o número de presos cresce mais do que o dobro do número de vagas criadas. Além disso, as reformas nas instalações do sistema prisional são feitas de forma precária e pouco ajudam a melhorar a vida do preso.

PCPOA ROTINA EM FOTOS

Juiz gaúcho registra em fotos rotina de um dos piores presídios do país


A imagem lembra um navio negreiro, com centenas de homens presos sentados lado a lado, sem espaço para se movimentarem.

A superlotação é rotina no Presídio Central de Porto Alegre, considerado um dos piores do país. São 4.700 detentos para 1.800 vagas.

A cena é uma das mais de 10 mil registradas pelo juiz Sidinei Brzuska, 48, da Vara de Execuções Criminais (VEC) da capital gaúcha.

Algumas das imagens que denunciam o abandono do presídio fazem parte da exposição organizada pela Ajuris (Associação de Juízes do Rio Grande do Sul), que aconteceu no mês passado no Fórum central porto-alegrense.
FOTO DE FAMÍLIA
Brzuska começou a fotografar em 1998, no presídio de Santa Rosa (a 484 km de Porto Alegre). Ele reparou que os detentos não tinham registros fotográficos com suas famílias, que apareciam em dias de visita. Os filhos de presidiários, diz, não têm fotos com seus pais. Ele os fotografava e revelava as imagens para entregar de presente.
"Os presos, então, começaram a colocar essas fotos na parede, arrancando os pôsteres de mulher pelada. Deu até um aspecto mais de casa, mais respeitoso e sadio."

Anos mais tarde, em Santa Maria (a 283 km da capital gaúcha), continuou fotografando, mas por outro motivo: o número de presos era muito maior e queria lembrar de cada um ao ler os processos.

CRISE NOS PRESÍDIOS
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Nessa época, suas fotos ajudaram na construção de um novo presídio. Brzuska pressionou o Estado mostrando a precariedade do local.

Entre os motivos para a exposição de fotos está a ideia de deixar registros para o futuro –as fotos são impressas em papel resistente–, e mostrar que a lógica de que "quanto pior, melhor" gera reincidência e fortalece as facções criminosas.

"O Brasil tem pouco mais de 500 anos. Desse período, quase 400 anos conviveu com a escravidão, achando que era normal surrar e vender pessoas. É um país muito jovem. Então, as pessoas acham normal essa realidade do presídio", diz o juiz.

LIVRE ACESSO

O juiz fotografa o Central de locais aos quais nem sequer os agentes penitenciários ou os policias militares, responsáveis pela segurança do local, conseguem acesso.
"Existe um acordo, onde os presos respeitam as áreas da Brigada Militar [a PM gaúcha], e ela não entra nos lugares controlados pelos presos."

Isso significa que não há presença do Estado nas galerias. "O Estado administra em consórcio com a facção. É mais barato", critica.

O título de uma das piores prisões do país se justifica pela superlotação e as péssimas condições estruturais, onde "canos" feitos de garrafa plástica servem para escoar urina e fezes de detentos.

O juiz trabalha há 20 anos na área, desde 2008 no Central. Por "circular nos dois lados das grades", diz ter uma visão sistêmica.

No Central, apenas 10% dos presos trabalham em funções administrativas como limpeza e cozinha. Nenhum dos 4.700 tem curso profissionalizante custeado pelo Estado. "Em que espaço [seriam os cursos]? Não dá nem para caminhar no corredor da galeria". 

CNJ RECOMENDA SOLTAR PRESOS NA FALTA DE VAGAS PRISIONAIS


Juiz Sidinei José Brzuska, da VEC da Capital: O rodízio de presos já vem sendo aplicado pelo Estado, que conta com as fugas para abrir espaço nas casas de semiaberto



JUS BRASIL Publicado por Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
À 8 ANOS


Desde que assumiu a função de fiscalizar os presídios da Região Metropolitana, o Juiz Sidinei José Brzuska, aterrado com a total falência do sistema carcerário gaúcho, vem alertando a sociedade para o grave problema prisional do Estado. Na semana passada, depois do anúncio de que magistrados da Execução Criminal, com presídios em sua jurisdição, definiram em consensco que não expediriam mandados de prisão para condenados que responderam ao processo e liberdade, até a existência de vagas para o cumprimento da pena, o Juiz Brzuska fez um relato da situação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que teve três horas de duração.


Abaixo, a entrevista concedida, em que relata a reunião no CNJ e expõe sua opinião sobre o caminho a ser adotado para solucionar a alto índice de fugas dos regimes aberto e semiaberto: 50 mil em 10 anos. Afirma que a solução existe, não é utopia, e tem um exemplo bem próximo da Capital.


1. Como foi a reunião com o Conselho Nacional de Justiça em Brasília? O CNJ pretende interferir nessa questão?


Na reunião realizada perante o Conselho Nacional de Justiça, da qual também participou o Promotor de Justiça Gilmar Bortolotto, foi feito um minucioso relatório sobre a situação prisional do Estado do Rio Grande Sul, ocasião em que foram apontados todos os problemas do sistema penitenciário gaúcho, inclusive os de ordem funcional, que em breve serão tornados públicos.

O CNJ não adiantou se pretende ou não interferir nessa questão. A sensação que tive é de que seus integrantes, ao menos os que tive contato pessoal, estão solidários com as iniciativas adotadas pelo Poder Judiciário do RS.

2. Como está o andamento das obras prometidas pelo Governo Estadual para aumentar o número de vagas? Elas já estão ocorrendo nas casas carcerárias da Região Metropolitana?

Na Região Metropolitana não existe nenhuma vaga nova sendo construída no regime fechado.

No regime semiaberto existem dois albergues em fase inicial de construção, com capacidade para 78 presos, cada um.

As demais obras em andamento referem-se à recuperação de prédios, cujas vagas foram perdidas por falta de manutenção. Nesse item está incluída uma edificação existente em Montenegro, que estava abandonada há anos e se deteriorou pelo não uso. Depois de reformada, o que está sendo feito depois de muita insistência da VEC, ela será aproveitada como presídio feminino, com capacidade para 76 vagas.

"Conselheiro do CNJ, durante o último encontro de Juízes de Execução Penal, recomendou a soltura de presos na hipótese de descumprimento de decisão judicial por falta de vagas"


3. Medidas mais drásticas que o rodízio de presos e a não-expedição de mandados podem ser tomadas em breve, caso a situação não melhore?

O rodízio de presos já vem sendo aplicado pelo Estado, que conta com as fugas para abrir espaço nas casas de semiaberto, permitindo com isso o ingresso de novos presos que progridem do regime fechado. Foram quase 50 mil fugas nos últimos 10 anos no Estado. Nos cinco primeiros meses de 2009, somente na Região Metropolitana, fugiram 1.374 presos.

A não-expedição de mandados de prisão afetará, basicamente, réus primários e que não cometeram crimes graves. A medida atenuará levemente o problema da superlotação e evitará a contaminação de tais condenados por criminosos de facções e outros grupos organizados que possuem poder no sistema prisional do RS.

Conselheiro do CNJ, durante o último encontro de Juízes de Execução Penal, recomendou a soltura de presos na hipótese de descumprimento de decisão judicial por falta de vagas.


"Dezenas de homicídios qualificados foram, recentemente, coordenados do interior de prisões gaúchas"



4. Conte como é a situação das casas carcerárias gaúchas que torna a situação tão preocupante?


O problema é tão grave e complexo que não comporta descrição em espaço pequeno como o presente. O relatório feito perante o CNJ durou três horas de explanação. Em suma, a ausência do Estado no fundo das casas prisionais abriu espaço para a barbárie, a qual está voltando para a sociedade na forma de crimes reiterados, alguns de extrema gravidade.

5. O Juiz Luciano Losekann disse em entrevista que na situação atual o crime não encontra limites. O senhor concorda?

Dezenas de homicídios qualificados foram, recentemente, coordenados do interior de prisões gaúchas. A ordem para a maioria deles partiu da penitenciária mais segura do Estado. Hoje, milhares de telefones celulares estão nas mãos de presos gaúchos por todo o Estado. Vigora a lei do mais forte. Está certo, portanto, o Dr. Losekann em sua assertiva.


"O aumento do quadro de servidores, com melhoria na remuneração, também deve ser tido como prioritário"


6. Na sua avaliação que ações poderiam, a curto prazo, aliviar a situação precária nos presídios?

A superlotação é a causa geradora da maioria dos problemas. Por isso ela deve ser atacada primeiro. O aumento do quadro de servidores, com melhoria na remuneração, também deve ser tido como prioritário.


"A ausência do Estado força a união dos presos. O resultado que decorre de tais uniões todos nós sabemos"



7. A partir de sua experiência, que outros problemas a situação carcerária enfrenta, além da superlotação
?

Nos presídios do RS falta tudo. É comum os presos reclamarem, dizendo que estão sendo tratados piores que bichos. A ausência dos bens mais elementares, como colchões, remédios, material de higiene e até mesmo comida, abre espaço para o fortalecimento das facções. Recentemente, em uma penitenciária aqui da Região Metropolitana, a comida estava sendo servida um dia do início para o fundo da galeria e, noutro, do fundo para o início. Isso estava sendo feito porque, se a alimentação fosse servida sempre no mesmo sentido, os presos do final da galeria ficariam sem comer, pois a quantidade servida era insuficiente.

A ausência do Estado força a união dos presos. O resultado que decorre de tais uniões todos nós sabemos.


"Na Região Metropolitana existe uma casa de semiaberto/aberto em que o número de fugas é praticamente zero"



8. Sabe-se que há um grande número de fugas de apenados, em especial dos regimes aberto e semiaberto. O que pode ser feito para solucionar esse problema?

Na Região Metropolitana existe uma casa de semiaberto/aberto em que o número de fugas é praticamente zero. Raramente existem evasões. Quando há, os foragidos se apresentam espontaneamente. Nessa casa é respeitada a capacidade de engenharia. Não há superlotação. Existem vários funcionários e todos os presos trabalham. O ócio dos presos foi banido. Como se trata de uma casa de albergado pequena, com apenas 80 detentos, os servidores conhecem todos os presos pelo nome. Os apenados recebem orientação e ajuda para resolverem seus problemas pessoais. A ressocialização deixa de ser uma utopia e passa a ser um fato. Acho que o caminho é por aí.

terça-feira, 2 de maio de 2017

SUSEPE NÃO PRETENDE RETOMAR OS PRESÍDIOS QUE ESTÃO COM A BM


Susepe não planeja retomar a guarda do Presídio Central e da Penitenciária Estadual do Jacuí. Projeção é de que seriam necessários 1.325 novos agentes penitenciários para substituírem os policiais militares atualmente empregados na Operação Canarinho, criada 22 anos atrás.

Por: Eduardo Torres
ZERO HORA 19/04/2017 


Foto: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS


A presença da Brigada Militar como responsável pela segurança interna do Presídio Central, em Porto Alegre, e da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), em Charqueadas, que já perdura há 22 anos, não tem perspectiva de terminar. A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), pelo menos, não tem em seus planos a retomada da responsabilidade pelas duas casas prisionais, que exigiriam um acréscimo de 1.325 agentes penitenciários. E a razão é econômica.

Mesmo que reportagem de Zero Hora desta semana tenha demonstrado que, a cada ano, a Susepe paga mensalmente cerca de R$ 1 milhão em diárias ininterruptas para os PMs designados à força-tarefa dos presídios, substituí-los, projeta a superintendência, custaria pelo menos R$ 5 milhões mensais. O cálculo não leva em conta o prejuízo de 1,5 mil policiais fora da segurança nas ruas.

A Susepe não se manifesta oficialmente sobre o assunto, por não considera-lo concreto. Há uma projeção técnica interna, porém, de que seriam necessários 925 novos agentes penitenciários para trabalharem no Presídio Central, e outros 400 para a PEJ.

As 700 vagas a serem preenchidas pelos aprovados no concurso realizado no último dia 9 serão destinadas, praticamente na sua totalidade, à abertura das duas unidades da Penitenciária Estadual de Canoas, que hoje opera apenas com um módulo.